Sim, um café, preto e forte com pouco açúcar. Nada de
expresso, já me basta o avanço capitalista das máquinas em outros momentos do
meu dia, e o ecoar dos tic’s ‘ tac’s do meu relógio me lembrando que não posso
perder o ponto, não outra vez. Então, faça-o coado, cuidadoso, como aqueles que
nossas mães faziam, compreende-me? Sabe, cara, a minha matava vários dragões
por dia (muitos filhos, trabalho pesado, um marido fodido), e quando se
debruçava sobre o pó e a água quente, eu queria poder ouvir seus xingamentos
ditos entre dentes,mas ao invés disso,
ela temperava a bebida com lágrimas de melancolia sem se vangloriar de suas
vitórias ou seus feitos extraordinários, sem aceitar a incrível pessoa que era.
Por que pessoas boas sempre se desacreditam? Ou se deixam desacreditar pelos
outros? É como se autoconfiança virasse sinônimo de sintomas egocêntricos
intoleráveis, e, no caso dela, seria um fôlego ao qual não se permitiria.
Apesar de levemente salgado, eu bebia seu café sem acrescentar as amenidades
dos açucares e leite, o saboreava devagar e quase quente, sem deixar uma única
gota. Esperava que meu gesto lhe dissesse que a aceitava com todas as suas
dores e o quanto estava disposta a afagar as suas feridas e cicatrizes. Nunca
tive coragem para perguntar se ela me entendia...
Por isso, moço, guarde esse seu cardápio cheio de frescuras,
leve embora suas nutellas e chantilly’s. Deixe isso para os afrancesados, que
desenham rabiscos de Paris na minha Feira de Santana. E para não dizerem que
fui hipócrita, admito que até aceitaria um desses se com ele viesse junto dois
dedos de prosa com Camus; assim, contaria a ele meus dilemas de Sísifo e meus
pesadelos com a Peste e, tranquilamente, toleraria seu sotaque arranhando meus
ouvidos. Tudo por um momento confessional. No entanto, devo dizer me
contradizendo que se devo experienciar algum sabor idiomático, ora que seja
logo o de Césarie e Fanon, pois, a cada gole dado, estarei problematizando uma
parte minha, alguma convicção, algum sentido de descendência e origem e me
entrelançando em redes de solidariedade identitárias, com certeza mais
profícuo.
Quer um conselho? Deixe de me ouvir, e diga ao
seu chefe que ele deveria usar o café brasileiro, este amargado não pela terra,
mas pelo suor e sangue de escravos, libertos e imigrantes que se perderam nos
cafezais; uma hora, amigo, é preciso encarar nossos fantasmas e prestar as
devidas honras. Então me traga a xícara, e me permita continuar bebendo as
lágrimas de minha mãe e o sangue e suor do meu povo, porque meu dia foi longo e
eu preciso permanecer em comunhão com os meus.