quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pandora

Sinto um engasgo na garganta, e sei que se nesse exato momento ela fosse cortada, mais que sangue sairia da ferida. Do corte aberto extravasaria meu ser despedaçado em angústias, no formato de soluços descompassados finalmente libertos. E nos pedaços capazes de alcançar o chão ou flutuar perante os olhos, os passantes poderão vislumbrar as memórias dilaceradoras, os desejos frustrados, as esperanças ressequidas, os medos alimentados na madrugada solitária. Minha garganta, minha caixa de Pandora. Serei capaz de costurar o rasgo, antes que perca aquilo que de bom há em mim?


domingo, 21 de novembro de 2010

Um mosaico para nós


Como consertar algo que se quebrou? Uma concha que se fragmentou poderia ecoar as palavras do mar? Um copo de fragmentos colados poderia dar alguém algo de beber? Uma alma quebrada consegue ter identidade? E um coração partido, dividido continua a bater? Sabe, filha, nem sempre temos dimensão da profundidade do nosso erro no outro; no entanto, isso não nos impede de tomar suas mãos nas nossas e dos pedaços que nos sobraram construir um belo mosaico...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sorriso de civilidade

Ela volta-se para trás com a terrível certeza do que irá avistar. Seu coração nunca mente; num instinto de automutilação ela quer ver, ela precisa ver o que se passa ali, logo ali, no balcão atrás de si. Seus amigos conversam. Ela sorri, responde, pergunta e discretamente observa os pedacinhos de seus sonhos flutuando em frente aos seus olhos, sendo levemente carregados pelo vento e misturando-se a fumaça dos cigarros à sua volta. Eles caem no chão como as folhas de outono. Ela chora lágrimas invisíveis, mas o seu rosto exibe um sorriso de mulata em dia de carnaval (ela é tão bonita sorrindo!). Oh! Abram alas que ela vai passar...


Ela levanta-se, tenta ir embora, despede-se, cumpre as formalidades de pessoas educadas e a civilidade a obriga a ficar. Sentindo que seu coração não cabe mais em um corpo só, quer correr livremente pelas ruas da cidade gritando, procurando por alguém que aceite o convite “Deixe-me dividir com você o meu coração”. Mas, ela senta, espera e sofre, ou seja, vive. Só aos loucos é permitido agir espontaneamente. Enfim, ela se vai sozinha e ele fica. Acompanhado e feliz.


No dia seguinte ele lhe sorri e ela sorri de volta, um sorriso de complacência, de aceitação. Dessa vez, ele se vai, mais feliz do que nunca esteve em sua vida. Essa felicidade lança-se contra o peito dela como uma faca de serra desgastada pelo uso, fazendo suas forças se extinguirem como o gelo que aos poucos desaparece no seu copo de whisky, e o whisky também desaparece. E ela fica. A Lua indiscreta revela o seu segredo. Exibe cruelmente as suas lágrimas, fazendo-a admitir a sua humanidade.


E ela descobre essa noite que não é um anjo, ela não sabe mais voar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Atrasos e reflexões


Ahh, cara, odeio gente que se atrasa. É muito egocentrismo, pois o mundo não gira ao redor daquele que não tem a decência de chegar no horário. Falta de educação não deveria se tornar um hábito, mas isso é justamente o que acontece com ele. Enquanto isso, vou passando meu tempo impacientemente sentado nas cadeiras de cafés e bares que sentei por toda minha vida, esperando certas vezes em vão.
Sentar e esperar é a pior fórmula para pensamentos reveladores. Sozinho com você mesmo e um tempo incapaz de ser medido, certas idéias sobre desejos íntimos e a vida banal alheia parecem brotar como sementes nas terras do paraíso. Começo sempre pensando como a vida dos outros é melhor que a minha. Sabe aquele pensamento de que para eles tudo acontece mais fácil, e que eu sou um enjeitado do mundo, rejeitado e marginalizado impedido de viver o bom que presumivelmente a realidade pode oferecer?  Ah, vamos lá, eu sei que você me entende, todos temos a nossa cota de drama existencial.
A questão é que seria muito fácil e comum viver a sina do pobre coitado, mas dependendo do atraso, essa coisa sofre uma mutação tal que o pensamento inicial vira uma coisa totalmente adversa. Quando você começa a se convencer de que a grama do vizinho é mais verdinha (o que no nosso sertão é algo que de fato chama atenção), nos assalta o sentimento óbvio de fraqueza: o verde do outro é mais legal, porque é mais difícil assumir que se é um péssimo jardineiro. Sei que parece uma conversa auto-ajuda, mas convenhamos qual ser humano que caminhou por sobre estas terras que nunca duvidou de si? Do que poderia fazer? E depois de tal reflexão se sentiu miserável e pequeno, um sem valor? Ser responsável pela própria felicidade é uma missão complexa e inevitável, então, um conselho: vamos compartilhar nossas infelicidades, pois aí teremos assunto deveras.
Claro que não é necessário estar esperando alguém para se refletir sobre isso, no entanto o que eu aprendi, enquanto esperava sempre a mesma pessoa, é que reflexões do tipo se tornam corriqueiras, mas nem por isso ausentes de intensidade, é como aquele beijo roubado durante a adolescência _ninguém pode ver, dura pouco, todavia arrebata todo o ser.
Uma pessoa sã, no auge dessa nossa conversa, deve me imaginar como um lunático que sofre esses processos por livre arbítrio, afinal bastava me levantar e ir embora. É, seria fácil se eu não esperasse quem espero; e de todo mais, quando o atraso é maior, às vezes sou assaltado por pensamentos mais otimistas. Perceber que meu sofrimento não é único nessa terra de deuses alivia. Sei que do meu lado neste balcão há pessoas que compartilham as mesmas dores que eu, às vezes trocamos olhares cúmplices, e lá no fundo do copo ou no último gole de café sinto até o sabor da esperança. Então, anseio por uma chegada, por acontecimentos agradáveis, um futuro abençoado, risos incontidos, um mundo melhor salpicado de sonhos.
Ser gente é isso, viver e pensar os extremos. Por isso, nos atrasos daquele que não chega, mas está por chegar, vou vivendo grandes momentos de humanidade que antecedem o ápice da existência configurado na porta da cafeteria que abre, na mulher de beleza própria que entra, em seu sorriso constrangido ao perceber meu olhar, na timidez ao se sentar ao meu lado no balcão, na ânsia de que eu pergunte o seu nome. Pois é, meus caros, o Amor chegou, e só assim percebo que nada é em vão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sobre degustações...

 
Existe algo em mim hoje que pede para sair, abandonar-me, talvez seja uma nova história, não sei bem, tem tanto tempo que não escrevo. Tive vontade de sair, de fumar um cigarro. Será que amanhã todas essas vontades ainda estarão aqui percorrendo minha corrente sanguínea? 
Quem sabe? Às vezes é interessante não ser o dono das respostas, ou das verdades iluminadas, um ser com uma boa imaginação pode explicar a realidade da maneira mais fantasiosa que já existiu, seus neurônios fabricarão uma razão para o real, que o tornará saboroso, apreciável, manjar dos deuses.
Se minhas células cerebrais trabalhassem bem, em ritmo vigoroso e com o volume de um rio caudaloso, eu seria capaz de acordar pela manhã, olhar meu quintal pela janela e, consequentemente, salivar. Caminharia a passos lentos pela casa em busca da porta da rua, e, escancarando-a, encontraria nas pessoas caminhando, na árvore balançada pelo vento, no ônibus barulhento virando a curva e no meu cachorro fujão voltando para casa, todo o meu café da manhã.
No entanto, eu só e simplesmente acordo, buscando nas propagandas televisivas o dia em que anunciarão o treinamento físico para as sinapses perfeitas. Otimista como sou, acredito que um dia não mais sentirei fome do mundo, pois então, como animal humano, finalmente, poderei funcionar. Sentirei, comerei, beberei, passarei mal, serei um pouco mais feliz com meu estômago existencial preenchido. Um dia experimentarei um novo doce do mundo, deixarei ele derreter sob minha língua de pensamentos, escorregar pela garganta do meu cérebro, ser dividido, reduzido a partículas cada vez menores, enviado ao meu sangue, bombardeado direto para o coração, que adora se afogar no mundo partido e modificado pelo suco digestivo da imaginação. Em outro momento qualquer, mastigarei rapidamente a comida azeda de vários dias provenientes dos gestos malévolos, das ambições desmedidas, mesquinhez e inveja dos espíritos fracos, porque é necessário conhecer todos os sabores dessa realidade que pode ser tão desconexa.
E quando tudo for assimilado pela minha cabeça e corpo, perceberei que é preciso se autodigerir, viver o canibalismo de si com sofreguidão, profundidade, experiência. Refletir-se, imaginar-se, ser seu próprio alimento-partícula-mundus numa realidade tempo-espaço que não se abandona, seres humanos não sobrevivem no vácuo; uma questão de dialética e física, respectivamente.

Entregue-se...

  Corra, corra, venha ouvir o blues, afogar-se na melodia do melancólico e belo. Se entregue a essa sensação revelada por seu coração, que se aperta e desafoga em questão de segundos. Ouça com atenção, deixe seus ouvidos se tornarem as portas para a música do alívio e da confissão. Teletransporte, veja o bar enevoado pela fumaça dos cigarros, Count Basie está ao piano, tocando sem perceber ninguém. Ele se torna membro do instrumento, é parte dele pela eternidade. Os burburinhos preenchem os espaços deixados pela música, são sussurros leves que viram parte da composição do ambiente. Caminhe até o balcão, olhe profundamente para o garçom, e peça um gim. Sente-se. Olhe a bela mulher do outro lado do salão cruzando as pernas, parece que tudo naquela noite foi feito para ela. Olhe sem medo, aproxime-se com o olhar, toque-a a distância, deixe que ela perceba e queira mais. Dissolva-se no espaço, você é a fumaça expelida pelos lábios rubros da dama, a bebida que lhe atravessa a garganta, a música nas cordas do piano, nos dedos de Basie, nos ouvidos perfumados da mulher de negro.
 
   Levante, e tire-a para dançar, segure seus dedos e encontre sua cintura, ambos os corpos que se arrepiam. Conduza-a, sinta o perfume de seus cabelos, deixe sua respiração falar baixinho palavras eróticas no pescoço dela, permita se excitar. Você é ela, o piano, a música, o hálito de gim, o vestido decotado que revela e esconde a beleza dos seios. Tu és tudo, mil partículas, tu és nada, e hoje, não há do que se arrepender.


Um poema para um amor

Densas nuvens negras escondem-te de mim
Mas como um mar impetuoso
Valente tu tornas a vir
Estou do alto admirado
Fascinado a te contemplar

Diana não me abandone
Só tua presença me faz repousar
O que me importa uma eternidade de sono
Se contigo posso sonhar?

Suplico humildemente ao Sol
Que não ilumine o meu dia
A noite escura me completa
É meu consolo nessa vida vazia.

Luana Reis.


“Ocorreu uma noite, enquanto Diana caçava no Monte Latmos, o jovem pastor Endimião estar adormecido ao lado do seu rebanho. Muitas vezes ele tinha visto a deusa de longe, um tanto assombrado de uma criatura tão bela e, ao mesmo tempo, tão implacável. Diana nunca tinha notado a beleza encantadora do jovem. Ela considerou-o tão perfeito quanto o seu irmão Apolo, talvez mais perfeito ainda, pois seu rosto adormecido voltado para cima tinha o encanto prateado da sua amada lua. Uma paixão ardente e abrasadora teria nascido aos raios ardentes do sol, mas o amor que então nasceu sob a luz pálida da lua era uma paixão mágica.

Quando Endimião sorriu no seu sono, ela ajoelhou, e, curvando-se, beijou os seus lábios com delicadeza. O toque da luz do luar não era mais delicado que o toque de Diana. Não obstante, foi suficiente para acordá-lo. Porém, demorou-se no sono querendo prolongar aquele êxtase de felicidade tão perfeita que experimentara. E antes que os seus olhos adormecidos pudessem ser a testemunha dos seus sentidos, Diana apressou-se em fugir dali. Endimião levantou-se num salto, mas viu apenas o rebanho adormecido, e ouviu o que lhe pareceu ser o ladrar de cães em plena caça na floresta ao longe no topo da montanha. Voltou a deitar-se esperando que mais uma vez esse milagre lhe fosse concedido. Nenhum milagre mais lhe sobreveio; sequer pôde voltar a dormir, tão intensa era a sua emoção.

No dia seguinte, nas horas abafadas em que Apolo conduz a sua carruagem reluzente ao longo do céu, Endimião, enquanto pastoreava o seu rebanho, tentou pelo sono reviver aquele encantamento uma vez mais, e desejou que o dia logo findasse e o frescor da noite escura voltasse. Quando anoiteceu, tentou permanecer acordado e ver o que poderia acontecer, mas logo o bondoso sono fechou os seus olhos cansados, e

Veio-lhe a encantadora visão de uma virgem,
Ela vinha num carro dourado
Que descia da lua suspensa no céu.
Lewis Morris

Chegou então a noite em que os sonhos de Endimião não mais tiveram fim. Foi uma noite em que a lua fez para si mesma um longo caminho de prata pelo mar, desde o distante horizonte até à praia onde as ondas encrespadas batem numa luminosa e sempre ondulante orla prateada. Prateadas eram também as folhas das árvores do bosque, de onde entre os galhos dos ciprestes sagrados e os imponentes pinheiros Diana lançava suas flechas de prata. O ladrar dos cães não veio inquietar o sono das ovelhas de Endimião, eram as estrelas luzentes que pareciam cantar no alto céu. Enquanto ainda aqueles lábios delicados o tocavam, as mãos ergueram delicadamente Endimião adormecido e levaram-no para uma caverna secreta no Monte Latmos. Ali, para sempre, ela vinha beijar os lábios do seu amado adormecido. Ali, para sempre, dormiu Endimião, feliz envolvido no êxtase perfeito dos sonhos que jamais terminam. ”

Adaptado de Jean Lang - Mitos Universais

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Você toma café e eu tomo chá!!




Não me venha com seus teoremas científicos enquanto falo de sentimentos. Meus motivos para não tomar café são bem simples: não gosto do aroma que tanto te fascina, não gosto do sabor forte que te inspira um cigarro e por fim, não gosto da dor de cabeça que causa a sua ausência. Sim, gosto de chá...


E, por favor, poupe-me de tuas tentativas de me definir, de descrever minha personalidade. Não gosto de chá porque sou calma. Se me olhasses de perto verias que sou desequilibrada, e por que não dizer histérica, nervosa e impaciente? Será isto resultado da cafeína?...Não, não quero falar sobre isso.

Permita-me o simples direito de tomar uma boa xícara de chá sem pensar em quem eu sou ou deixo de ser. Permita-me este momento de prazer cotidiano sem a tua metafísica. Belamente já disse Pessoa “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.”


Não me julgues por um ato tão simples e cotidiano. Tu gostas de café, bebe-o. Aprecia teus bons momentos de abstração, contemplação e prazer. Eu tomo meu chá e continuo sendo.

Les amants d'un jour

By diferrent (Deviantart)



"Moi, j’essuie les verres
Au fond du café
J’ai bien trop à faire
Pour pouvoir rêver
Et dans ce décor
Banal à pleurer
C’est corps contre corps
Qu’on les a trouvés…"


"Eu, eu esfrego os copos
Um fundo de café
Tenho muito o que fazer
Poder sonhar
E nesta decoração
Banal a chorar
Corpos contra corpos
Aquilo se achou..."

Edith Piaf

Para começar...

By Kkarasu (Deviantart)

Necessito morrer pela palavra, afogar-me em frases compostas pelo meu íntimo, desfalecer apunhalada pelo metal frio das minhas verdades interiores. E já morta, lá do outro lado, ser resgatada por um fio de palavras conectadas e significativas sobre meus anseios, sobre quem eu sou, e o mundo que vejo e verei.