(O primeiro escrito)

Essa história foi esquecida há muito tempo. Poucos são aqueles escolhidos que conseguem lembrar e passar a diante, no mundo onde as imagens dizem tudo, nem todos conseguem ouvir; onde tudo é muito veloz, nem todos querem esperar; na busca da felicidade imediata, o final dessa história não convenceu, por isso se perdeu. Mas existem aqueles que fogem a norma da existência, eles vivem para perpetuar a mágica cotidiana, lembrando a todos que a história da humanidade é repleta de fantasia, caminhos, jornadas, de superação ou definição de destinos.

Mas apesar de tudo, das inúmeras tentativas de fazer o futuro conhecer sua ancestralidade, muito se perde. Grandes histórias desapareceram, inúmeras sagas deixaram de ser contadas; lágrimas foram poupadas, e também risos e esperanças.

Essa história foi esquecida há muito tempo, e só pôde ser contada novamente, hoje, porque surgiu como um sonho. Ela foi devolvida naquelas horas, em que achamos que nada fazemos, e silenciamos; sussurrada em nossos ouvidos sem que pudéssemos perceber. No entanto, quando acordamos, poucos de nós se lembraram, outros só vislumbraram imagens fugidias, mas não compreenderam o que viram. A dádiva foi momentânea. Mas a você, entrego-te escrita, eternizada num papel; até que o tempo leve-a novamente embora da minha e da sua memória e da frágil tinta que beijou essa carta.

Anos atrás, ninguém sabe ao certo quantos, a realidade tocou o absurdo. O inesperado fez-se presente e convidado predileto da existência. A ninfa adormecida recebeu um presente dos ventos, ela descansava sob a sombra de uma grande árvore, seu sono era embalado pelo farfalhar das folhas, pela música das águas, pelo respirar daqueles que não podiam ser vistos por olhos comuns. Aos seus pés, o vento em sua forma serena entregou-lhe palavras roubadas, palavras que não deveriam ser espalhadas, um segredo íntimo.

Mas a ninfa ainda dormia, ela não acordou para receber o presente que o vento delicadamente lhe entregou, esse desleixo e falta de tato alfinetou o ego volúvel do vento; então ele pediu às folhas que não cantassem mais, e sim gritassem; pediu às águas que corressem mais rápido, e ele não mais acariciou a fronte do ser que dormia, mas a flagelou como castigo por seu sono tão pesado.

Com um estalo a ninfa se levantou, pensou que a floresta fosse desabar. Mas o que viu foram aquelas folhas estranhas que voavam a sua frente sem cessar. Estendeu seus braços para pegá-las, mas o vento tinha decidido transformar aquela situação num jogo. Ela sorriu com o desafio, e correu e dançou com o vento, sendo presenteada aos poucos com cada folha.

Satisfeito, o vento resolveu descansar. E agradecida, a menina pôs-se a ler. Eram palavras mágicas que estavam escritas, ela deduziu, só podiam ser, já que haviam lhe trazido lágrimas aos olhos. Eram palavras que se misturavam com paisagens, era uma grande campina verde melancólica que se desenhou diante de seus olhos. A saudade estava lá como um desabafo de um tempo que não pode voltar, senão através das palavras. Eram mágicas, porque a transportou para um lugar que ela não conhecia, mas que despertavam emoções já conhecidas. Quem as escreveu? Quem a fez se sentir tão saudosa e distante? Quem havia feito submergir aquela sensação perdida outrora?

Ninguém soube como ela havia se sentido naquele dia, nem seu amigo vento, o responsável por desencadear o evento que se tornaria bênção dos sonhos. Durante dias, semanas, o poema lido a consumiu, girou sobre seus olhos, seus lábios que o cantavam, seus dedos que o tornaram melodia através das cordas de sua harpa. A ninfa não pode dividir aquelas palavras com ninguém, nítido que era um segredo a ser preservado. Somente a floresta a ouvia, mas de seus habitantes devia ser escondido, pois ela se tornara cúmplice de um desconhecido, não importava a quem o segredo pertencia, devia guardá-lo.

O vento comovido com essa atmosfera, com o poema cantado pela ninfa, que distraída não o percebeu, resolveu que outras daquelas folhas deveriam ser trazidas, eram presentes maravilhosos, que hipnotizou a menina, que a fez cantar e tocar lindamente. Sorrateiro, o travesso percorreu a imensa floresta densa e multicor em direção ao seu limite leste, foi lá que antes ele havia encontrado as palavras mágicas. Ele, menino que era, não sabia o que elas significam, mas  a donzela que as desenhava era tão bela, e olhava com tanta ternura aquele papel, que sua curiosidade foi atiçada; ele não sabia ler e essa jovem não podia compreende-lo, por isso ele as tinha roubado, tomado para que sua amiga lesse.

Na fronteira da floresta havia um grande carvalho, de grosso tronco e copa farta, embaixo de sua sombra estava a humana roubada com sua varinha mágica, que desenhava, e contava segredos compreensíveis a poucos. De mansinho, o vento se prostrou as suas costas, a jovem sentiu uma leve brisa roçar-lhe o pescoço e suspirou. O vento sem acreditar no que via respirava tristemente por sobre os ombros dela. As páginas estavam em branco. “Impossível! Tanta viagem para nada? Ora menina escreva!!” , ele pensava. Mas a tarde ia passando, mais suspiros a humana dava, até que frustrada na percepção de seu vazio jogou as folhas ao chão.

Inconformado, o vento levantou as folhas e atirou-as para a garota. Mas ela não as queria de volta. Então, ele pensou, se não queres escrever, deixarei que minha ninfa escreva. Então, ele tomou dessa vez não só as folhas, mas a caneta e tinta também. A humana que até então suspirava, não compreendia aquele ato da natureza que parecia ganhar vida de maneira absurdamente lógica, tentou pegar sua caneta, objeto de sua grande estima, todavia aquele vento não lhe dava oportunidade. Então correram ambos, perseguido e perseguidora, em direção ao interior da floresta. Travaram uma competição, em que o vento sabia que seria vencedor. Depois de minutos a correr, a humana parou, seu fôlego pequeno não conseguiu lhe garantir mais tempo no encalço do ladrão. E foi sem fôlego que percebeu que não sabia como voltar para casa. Fechou os olhos procurou com o tato alguma pista do danado, mas nada sentiu. Caminhou. Respirou. E de repente a floresta preencheu seus olhos e ouvidos, e a menina ficou extasiada diante da vida que a circundava.

Melodia. Música. Uma voz tímida se elevava em algum lugar a sua frente. Era uma música conhecida a que murmurava. Era... era o seu escrito cantado. “Mas, como?”- perguntou-se, “quem poderia ter matizado meus sentimentos de maneira tão sincera?”. Foi assim que a viu, antes mesmo de seus olhos a encontrar. Pela voz, pela forma como transformou sua saudade em melodia, ela conheceu a pequena ninfa.

Caminhou até aquela que havia lhe desvendado, o som vinha de uma clareira parcamente iluminada, no centro com as pernas cruzadas, segurando uma harpa havia uma criatura belíssima, enfeitada com flores, cabelos multicor reluzentes, de olhos travessos que não muito diziam, mas cativavam rapidamente. De súbito levantou, pensou em correr, mas a garota já a havia visto, não soube o que fazer, talvez uma técnica de ilusão... Ah se sua mãe soubesse que ela deixou que uma humana, uma humana a visse. Sua confusão foi ligeiramente interrompida por uma pergunta irrompida dos lábios da outra: “quem escreveu essa música?” Foi o catalisador, além de estar encrencada, aquela garota ainda ouviu seu segredo!!! Sua confusão foi ainda maior... “Onde conseguiu essa música?” ... O vento correu para o seu lado e a mudez não permitiu que ela falasse... “Ladrão, disse a ela que essas palavras são minhas?” ... O mundo girou.

Como se a natureza tivesse um dos seus mistérios revelados, a ninfa só pode dizer: “suas?” E as conseqüências de tal revelação ninguém sabe ao certo. Quem passava por lá não pode evitar que seus sentidos se dedicassem um minuto para contemplar o mais novo segredo dito no coração da floresta.

“Sim”.

Emocionada, calmamente a ninfa caminhou na direção da menina. Sua expressão era tão serena e comovida, que a humana teve sua raiva dissipada, as acusações não encontraram mais espaços em sua língua e pensamentos, e quando percebeu estava envolvida por um abraço inesperado.

Suas histórias se encontraram e desse encontro nasceu os acontecimentos mais belos. Uma adentrou a vida da outra, compartilharam escritos, músicas, sentimentos. Um fim encantador se desenhava, no entanto, fatalidades parecem sempre acontecer com aqueles que esqueceram de perceber o mundo. Quem via a felicidade que transbordava dessa amizade, possuía olhos cobiçosos e receosos. Familiares se juntaram: “minha filha com uma humana fugaz”, “minha menina vítima de mágicas de seres fajutos”. Murmúrios. Falas de separação que construíram o plano. Distraídas, não perceberam.

Na sorte foi tirada aquela que deveria ser levada. Os deuses foram convocados e aconselharam o nome de quem devia ser tomada, mas somente os habitantes da terra poderiam levar o plano absurdo pra frente. Eles disseram em uníssono: “Levem a menina, os humanos vivem mais de uma vida, mas as ninfas só tem direito a uma, por isso vivem a beira do infinito... Levem a menina, pois ela poderá amar em outras vidas, e a ninfa aprenderá matar seu amor, pois já viveu mais...”

O desfecho é nebuloso, mas os antigos sabem que a bela dama negra foi convidada a visitar a jovem moça. De súbito, seu sangue esvaiu e tingiu o jardim de sua família. Sua mãe não chorou a perda, encarava aquele momento como salvação para sua menina amada. A ninfa amaldiçoou a rainha, sua mãe, e condenou aqueles que sabiam do plano injusto, e dedicou um século da sua vida a chorar pela felicidade roubada.

Dizem que finais felizes são uma invenção recente, mas otimistas querem acreditar e divulgam uma história em que a vida da ninfa se cruzou novamente com uma humana, que não tinha os mesmos olhos, cabelos ou dedos de sua primeira amiga, mas que trouxe palavras mágicas já conhecidas sobre uma campina, a saudade, um segredo já compartilhado.