Chegava cansado do
trabalho, mais um dia de rotinas absurdas e consumação de vidas. Oito horas
diárias de uma atividade que, depois de 15 anos, ainda não conseguia se
justificar para si. Dizia que era pelo dinheiro, em outros momentos, que era um
trabalho tranquilo; sem se resolver vivenciava sua jornada de trabalho como um
autômato, deixando qualquer sombra de crise existencial sempre para depois.
Colocou a chave no
segredo, queria somente um banho e um minuto para si, transformar-se no centro
do universo em expansão por um momento. Refletiria sobre sua densidade, brilho
próprio, sua atmosfera que não gerava vida há milênios; depois se voltaria para
os fenômenos da gravidade, e desvendaria o segredo das órbitas e o equilíbrio que
deveria haver entre ele e os demais corpos celestes com quem compartilhava sua
existência.
Girou a chave, ouviu em
êxtase o click que antecedia seu minuto de paz. “Surpresa”. Apitos, gritos e
gargalhadas. “Parabéns”. Mãos que o tocavam sem permissão, abraços que nada
diziam e sorrisos de enfeite. Cinco minutos depois estava sentado alheio no
sofá, enquanto todos desfilavam pela sala e se serviam dos aperitivos. Era
mesmo seu aniversário? Ao ouvir os parabéns daquelas pessoas, ele não foi
invadido pela sensação da lembrança, não se surpreendeu com a recordação e
vivenciou a experiência do esquecimento. Por mais absurdo que parecesse se
perguntou sobre as probabilidades de farsa e engodo, e tirou a carteira do
bolso do paletó. Seu documento não mentia, era de fato seu aniversário, fazia
47 anos. Porém, ao contrariar a prova escrita, havia o testemunho de toda
aquela gente; apesar de todo cumprimento inicial, ninguém mais lhe dirigia
palavra alguma, tal atitude criava dúvidas sobre o merecimento de seus 47 anos.
Levantou-se sorrateiro,
não comeu ou bebeu, mas subiu as escadas em direção ao quarto. Nos últimos
degraus sentiu seus joelhos rangerem, e levemente aceitou a idade que se fazia,
todavia não se deixou emocionar pelas pessoas lá embaixo, aquela festa não
pertencia a ele, que naquele jogo era somente o pretexto. Com sua intimidade
conspurcada pelo riso e pela música vulgar que tocava, deixou-se despir
mecanicamente por suas mãos numa espécie de movimento parassimpático de seu
corpo. Foi ao chuveiro, entregou-se ao banho tentando recuperar seus planos
iniciais de autoconhecimento, que o levariam ao prazer de pensar em si sem
pressão pela culpa ou acusações interiores sobre narcisos.
Seus pensamentos não
conseguiam competir com o barulho, enxugou-se, e começou a contar como um
exercício contra a raiva e a frustração. Quatro, cinco, seis, sete. Concluiu que
quem inventou os aniversários surpresas deveria prestar contas ao tribunal, um
crápula desses devia saber as implicações a que submetia o aniversariante, é
impossível que ele não as tenha imaginado. Vinte e um, vinte e dois, vinte e
três. “Bosta de música”, só faltava começar lá embaixo um espetáculo burlesco
para todos cantarem como em um musical, dublando vozes alheias e fingindo
expressões faciais que não utilizamos na vida real. Quarenta e cinco, quarenta
e seis, quarenta e sete... Deitou-se nu na cama, passou a mão pelo seu vasto
ventre e iniciou uma busca pelas pistas deixadas pelo tempo. Sentia sua pele
ressecada e o latejar incômodo das articulações, mas não eram detalhes
desesperadores, afinal estar acima do peso, ter a pele dura ou sentir dor eram
aspectos que necessariamente não tinham idade para acontecer, qualquer pessoa
podia se afligir com isso. Passou a mão pela testa para enxugar um suor inexistente,
e sentiu seus dedos caminharem em direção ao que conscientemente evitava;
tentou impedir o movimento, mas suas mãos não o obedeciam, então as deslizou
sobre a cabeça numa tentativa vã de lhe afagar os cabelos. A cabeleira farta e
brilhante que lhe ofereceu o destaque na juventude não existia mais, a ausência
do símbolo de sua jovialidade e beleza o situou na linha do tempo do mundo,
fazendo-o soltar um suspiro revelado em um palavrão. Se via de forma ridícula,
que espécie de homem afinal se preocuparia com detalhes como cabelos? Sarcasticamente
pensou em se dar uma peruca de presente.
Lá embaixo os rumores
não cessavam, e se preocupou que houvesse tempo suficiente para que fosse
visitado por todos os seus fantasmas. Avaliou estrategicamente, e se vestiu.
Enfileirou seus dilemas, um a um, na beirada da cama: a calvície, o divórcio, o
trabalho, sua idade. Guardou em si cada uma de suas feições, matizes e
texturas; e despreparado para o enfrentamento balbuciou umas desculpas e
solicitou que voltassem dali a um ano. Sem oferecer mais nenhum olhar, fechou o
quarto e fingiu a arte de socializar.