quinta-feira, 27 de março de 2014

47

Chegava cansado do trabalho, mais um dia de rotinas absurdas e consumação de vidas. Oito horas diárias de uma atividade que, depois de 15 anos, ainda não conseguia se justificar para si. Dizia que era pelo dinheiro, em outros momentos, que era um trabalho tranquilo; sem se resolver vivenciava sua jornada de trabalho como um autômato, deixando qualquer sombra de crise existencial sempre para depois.
Colocou a chave no segredo, queria somente um banho e um minuto para si, transformar-se no centro do universo em expansão por um momento. Refletiria sobre sua densidade, brilho próprio, sua atmosfera que não gerava vida há milênios; depois se voltaria para os fenômenos da gravidade, e desvendaria o segredo das órbitas e o equilíbrio que deveria haver entre ele e os demais corpos celestes com quem compartilhava sua existência.
Girou a chave, ouviu em êxtase o click que antecedia seu minuto de paz. “Surpresa”. Apitos, gritos e gargalhadas. “Parabéns”. Mãos que o tocavam sem permissão, abraços que nada diziam e sorrisos de enfeite. Cinco minutos depois estava sentado alheio no sofá, enquanto todos desfilavam pela sala e se serviam dos aperitivos. Era mesmo seu aniversário? Ao ouvir os parabéns daquelas pessoas, ele não foi invadido pela sensação da lembrança, não se surpreendeu com a recordação e vivenciou a experiência do esquecimento. Por mais absurdo que parecesse se perguntou sobre as probabilidades de farsa e engodo, e tirou a carteira do bolso do paletó. Seu documento não mentia, era de fato seu aniversário, fazia 47 anos. Porém, ao contrariar a prova escrita, havia o testemunho de toda aquela gente; apesar de todo cumprimento inicial, ninguém mais lhe dirigia palavra alguma, tal atitude criava dúvidas sobre o merecimento de seus 47 anos.
Levantou-se sorrateiro, não comeu ou bebeu, mas subiu as escadas em direção ao quarto. Nos últimos degraus sentiu seus joelhos rangerem, e levemente aceitou a idade que se fazia, todavia não se deixou emocionar pelas pessoas lá embaixo, aquela festa não pertencia a ele, que naquele jogo era somente o pretexto. Com sua intimidade conspurcada pelo riso e pela música vulgar que tocava, deixou-se despir mecanicamente por suas mãos numa espécie de movimento parassimpático de seu corpo. Foi ao chuveiro, entregou-se ao banho tentando recuperar seus planos iniciais de autoconhecimento, que o levariam ao prazer de pensar em si sem pressão pela culpa ou acusações interiores sobre narcisos.
Seus pensamentos não conseguiam competir com o barulho, enxugou-se, e começou a contar como um exercício contra a raiva e a frustração. Quatro, cinco, seis, sete. Concluiu que quem inventou os aniversários surpresas deveria prestar contas ao tribunal, um crápula desses devia saber as implicações a que submetia o aniversariante, é impossível que ele não as tenha imaginado. Vinte e um, vinte e dois, vinte e três. “Bosta de música”, só faltava começar lá embaixo um espetáculo burlesco para todos cantarem como em um musical, dublando vozes alheias e fingindo expressões faciais que não utilizamos na vida real. Quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete... Deitou-se nu na cama, passou a mão pelo seu vasto ventre e iniciou uma busca pelas pistas deixadas pelo tempo. Sentia sua pele ressecada e o latejar incômodo das articulações, mas não eram detalhes desesperadores, afinal estar acima do peso, ter a pele dura ou sentir dor eram aspectos que necessariamente não tinham idade para acontecer, qualquer pessoa podia se afligir com isso. Passou a mão pela testa para enxugar um suor inexistente, e sentiu seus dedos caminharem em direção ao que conscientemente evitava; tentou impedir o movimento, mas suas mãos não o obedeciam, então as deslizou sobre a cabeça numa tentativa vã de lhe afagar os cabelos. A cabeleira farta e brilhante que lhe ofereceu o destaque na juventude não existia mais, a ausência do símbolo de sua jovialidade e beleza o situou na linha do tempo do mundo, fazendo-o soltar um suspiro revelado em um palavrão. Se via de forma ridícula, que espécie de homem afinal se preocuparia com detalhes como cabelos? Sarcasticamente pensou em se dar uma peruca de presente.

Lá embaixo os rumores não cessavam, e se preocupou que houvesse tempo suficiente para que fosse visitado por todos os seus fantasmas. Avaliou estrategicamente, e se vestiu. Enfileirou seus dilemas, um a um, na beirada da cama: a calvície, o divórcio, o trabalho, sua idade. Guardou em si cada uma de suas feições, matizes e texturas; e despreparado para o enfrentamento balbuciou umas desculpas e solicitou que voltassem dali a um ano. Sem oferecer mais nenhum olhar, fechou o quarto e fingiu a arte de socializar.

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