domingo, 12 de dezembro de 2010

A palavra vermelha

A meus amigos do CLE

Finalmente o sábado havia chegado, podia respirar mais calmamente e me alegrar com a possibilidade de rever meus amigos. Tínhamos o costume de sempre nos encontrar no primeiro sábado de cada mês para beber e conversar sobre diversos assuntos. Bebendo e ouvindo-os eu me sentia o mais conectado possível a este mundo, nossos encontros tinham um peso de uma lei, que nunca seria capaz de subverter ou descumprir, era uma questão de honra pessoal.

Todas as nossas reuniões eram diferentes, conseguíamos ir de um quadro de Picasso a um livro de Virginia Woolf, para um passo depois chegar ao assassinato de uma família inteira, página principal do jornal diário, tudo isso com uma grande facilidade, as conversas simplesmente fluíam. Meus amigos representavam minha válvula de escape, deles eu nada escondia: nem meus argumentos fracos, meus defeitos mais vis, meu coração quando despedaçado, ou meu riso preenchido de felicidade.

Neste sábado, havia algo que não pude escamotear. Era o tormento de meus sonhos recentes, que arruinavam meus nervos e fragmentava minha mente. Cansado das noites insones, encaminhei-me ao bar que simbolizava nossa ágora, alguns haviam chegado, éramos um grupo um tanto grande, às vezes alvoroçado, em outras, sóbrio. Iniciei meus cumprimentos repletos de abraços, beijos e leves batidas nas costas, e imediatamente pedi um whisky. Enquanto os outros chegavam, distribui sorrisos e me acerquei das últimas novidades sobre trabalho e família dos meus companheiros, no entanto, fui inapto na tentativa de acobertar as olheiras, os ombros caídos, a voz rouca e o leve tremor nas mãos.

Augusto, o mais perceptivo de todos, mas também o de maior curiosidade, logo me interrogou sobre meu estado, que fugia enormemente da minha resposta seca de “bem”. Respondi que era somente o resultado de algumas noites sem conseguir dormir direito, assolado por um mesmo pesadelo infindável. Todos os olhos da mesa se pousaram em mim e indicavam que uma pergunta muda no ar pairava, então, como resposta, prossegui contando-lhes o sonho.

“Não entendo, porque ando sonhando com isso. É uma história boba, que meu avô me contou anos atrás; e se olharmos por certo ângulo não há nada de assustador nela, todavia, após sonhá-la, acordo banhado em suor e meus olhos custam a se fechar novamente. Quando fiz quinze anos, meu avô me chamou em seu quarto, e disse ter um presente especial para mim. Empolgado, tentei adivinhar que presente seria esse: uma viagem? Um relógio de ouro? Um livro raro? Ele simplesmente balançava a cabeça em negativa e sorria. Enfadado com meus chutes e comovido com minha frustração em não conseguir desvendar o presente, ele se levantou e pegou uma caixa de madeira negra entalhada com o brasão de nossa família em tempos antigos. Sentou-se a minha frente e colocou a caixa entre nós dizendo que eu só poderia recebê-lo depois de ouvir sua história. Óbvio que concordei, estava curioso não somente em relação ao objeto que a caixa guardava, mas também porque aquele momento parecia solene e preenchido de mistério.

Sua voz antiga iniciou a história nascida num tempo distante, cerca de dois séculos atrás, era sobre um cavalheiro chamado Édmond Couvier, antepassado de nossa família. Couvier era um rapaz dado aos estudos e às farras, sua família tinha um título nobre, e não possuía pudor em manter suas posses da forma que fosse, seja por arrendamento de terras ou pelo comércio marítimo, algo que a diferenciava das outras famílias da Corte. Lembrem-se dos livros da Jane Austen, e insiram um personagem nobre, liberal e sem pudores: eis a imagem do meu parente longínquo. Em uma de suas noites de beberagem nas ruas sujas de Paris, Edmond conheceu um jovem bonito de feições audaciosas chamado Bartolomeu. A sintonia entre ambos foi imediata, Bartolomeu demonstrou ser bastante inteligente e perspicaz ganhando rapidamente a admiração e confiança de Édmond.

Os dois iniciaram uma amizade intensa, viam-se sempre, a única sombra que pairava entre eles era um segredo mantido por Bartolomeu. Esse sempre viajava por quatro dias para um lugar desconhecido, uma vez a cada mês, sem nunca dizer a Couvier, onde esteve, o que fazia ou com quem estava. O amigo sempre respeitou seu segredo, mas não conseguia impedir de se sentir intrigado. Até que decorrido três anos desde a primeira vez que se encontraram, Bartolomeu propôs a Édmond que o acompanhasse na próxima viagem. Nesse momento da história, meu avô suspirou, e bebeu um pouco de água.”

_ Assim como você bebe seu Whisky agora_ , disse Ariadne, sorrindo para mim. Todos meus amigos prestavam atenção a minha história, e isso me fez relaxar um pouco.

“Enfim, segundo meu avô, eles viajaram durante dois dias, até chegarem às terras extensas de um barão, cujo nome se perdeu da memória de minha família, que os recebeu com grande amabilidade. Couvier foi levado a um quarto e informado de que logo a noite haveria um jantar. Meu parente notou que na cama de seu aposento havia vestes elegantes e uma máscara preta simples que cobria a região dos olhos e nariz, deixando visível somente os lábios. Apesar de surpreso por Bartolomeu não informá-lo sobre o caráter da reunião, Couvier entendeu aquilo como bizarrices de um nobre entediado, e resolveu experimentar a brincadeira.

Chegado o momento do jantar, Édmond encontrou Bartolomeu vestido da mesma forma que si, também portando uma máscara. Caminharam até uma saleta de tamanho considerável, onde se depararam com um número de pessoas próximo ao nosso grupo. Homens e mulheres que conversavam de forma animada, riam e discutiam em baixo e alto tom; todos bebiam vinho e recepcionaram bem meu “tio” distante. Até aqui, não tinha visto nada demais na história do meu avô, e já estava me cansando de tanta ladainha, quando ele disse que tudo parecia comum e real, até a chegada do jantar.

Sentado a mesa do barão, sentindo tanta fome, Couvier salivava a espera da comida que se antecipava através do cheiro, uma série de criados entrou na sala de jantar e depositou as bandejas fechadas diante dos convidados. Quando a tampa foi retirada, Édmond se sentiu um homem frustrado e irritado, porque o que havia dentro dos pratos era nada mais nada menos que diversas páginas de livros antigos manuscritos. Olhou de Bartolomeu até o anfitrião pedindo que a comida de fato fosse trazida, até perceber, para sua surpresa, que todos na mesa comiam despreocupadamente aquelas folhas, sem se importarem com sua fisionomia e irritação. Pareciam irracionais que se deleitavam com talheres cada palavra mordida, frase mastigada, cada pensamento engolido. Eles não viam mais ninguém, soltavam gemidos de prazer e comiam, comiam sem parar. Mais páginas eram trazidas, e Édmond se levantou com horror diante daquele espetáculo, se aproximou de Bartolomeu dizendo que iria se retirar, quando notou um fio escarlate que subia pelo pescoço do amigo, percorrendo lentamente a trajetória da jugular até alcançar suas faces. Assustado, olhou mais de perto, e percebeu que aquele vermelho que brilhava e tomava conta do rosto, mãos, corpo, era na verdade um fio de palavras escritas em uma letra floreada, a letra de seu próprio amigo, que dizia:

Quando conquistou tudo o que todos querem cortejar, a pobre recompensa não valeu os custos: juventude desperdiçada, alma aviltada, honra perdida, são os teus frutos, ó paixão triunfante!”

Olhou ao redor, viu o mesmo efeito no rosto das mulheres e homens presentes, as letras se diferenciavam, e também as cores, umas negras, azuis; outras, douradas, verdes. E, quando nada podia parecer piorar, as palavras encontraram o caminho dos lábios, e todos pararam de comer para poderem escoar as palavras de seus corpos. Uns gritavam, cantavam, outros vomitavam, as moças mais recatadas sussurravam, os que escreviam poesia declamavam. Os criados nada faziam, e Édmond assistiu tudo extático. Nunca se soube quanto tempo durou o “recital”, mas o que meu avô disse sobre quando o silêncio foi instaurado, é que Couvier correu com toda energia de seu corpo, subiu em uma das carruagens e voltou para casa de sua família, sem nunca mais procurar Bartolomeu, que, no entanto, encontrou uma única vez depois do episódio, quando foi comprar um mimo para sua recém-esposa e foi observado pelo mesmo da janela do estabelecimento. Bartolomeu somente sorriu para depois se perder na multidão das ruas.”

_ Mas, enfim, o que havia dentro da caixa?_, Eleonora me perguntou ansiosa.

_ Um garfo...

Meus amigos riram divertidos, sem me levarem a sério.

_ É a mais pura verdade, meu avô disse que Édmond o segurou durante todo o jantar, e fugiu com ele, sem se dar conta que o carregava. E desde então é passado como o maior tesouro de nossa família

Também ri diante da situação, minha história e meu pesadelo ganharam ares cômicos por causa de um garfo. Na mesa, somente Ariadne sorria me sondando com o olhar, apoiando seu queixo em suas mãos, foi quando imaginei ter visto em seus dedos entrelaçados um laço escarlate que parecia se movimentar...

_ Ô, garçonete, traz um garfo aqui para nosso amigo_, gritou Augusto.

Todos riram, menos eu, pois a palavra vermelha havia se perdido dos meu olhos...

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