quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

1968

Texto de uns dois anos atrás, nem me lembrava mais dele, mas o achei hoje e resolvi postar, não pela qualidade de escrita ou algo do gênero, mas por uma utopia passada, e, no entanto, tão presente.

1968

Era manhã, bem cedo havia me levantado, e saí para rua encontrando o vento frio do início do dia a acarinhar-me a face. Poderia ter me levantado para um dia qualquer, como quase todos os outros anteriores de minha vida, cuja importância e valor só pude descobrir aos seus finais, quando deitava minha cabeça ao travesseiro ou então, quando meus olhos acompanhavam o nascer de um novo dia da janela semi-aberta de meu quarto.
No entanto, houve dias em que vivi emoções únicas, como quando ia a escola ver a minha linda professora que tentava dar sentido a valores como dignidade e respeito, com aquele tom de voz apaixonante, tão crédulo e contagiante. Ou então quando acordei para receber das mãos de meu falecido avô aquela bicicleta vermelha e usada, mas que fora meu primeiro sonho de infância, pelo menos o primeiro que me vem à memória. E se puder acrescentar mais um dia, seria aquele em que beijei a primeira menina no quintal de sua casa, minhas mãos tremiam e tudo parecia tão atemorizante e, ao mesmo tempo, surpreendente. E tenho a sensação que hoje com certeza será a mais nova cicatriz de minha existência.
Hoje, os pássaros cantaram com as primeiras horas da manhã, eram como sons de bênçãos pelo novo amanhecer. Respirando fundo dei meu primeiro passo pela rua, o céu estava azul com algumas nuvens que se escondiam ali e aqui, e no ar havia um cheiro qualquer que eu ainda não era capaz de identificar. Meu coração palpitava, dava solavancos, buscando sair de meu ser para conquistar o mundo, nele morava uma ansiedade fruto de um sonho de semanas, meses remoído e re-sonhado na cabeça.
Naquela manhã deixei que minhas pernas fossem guiadas por esse órgão que bombardeava sangue para minhas veias e impulsos para meu espírito. Nele habitava o sonho compartilhado por milhares, combustível existencial, fôlego de humanidade, pois ele era o possuidor do desejo de liberdade.
O vento nos meus cabelos não era capaz de confundir minhas idéias e abalar meus anseios, todavia trazia às minhas narinas o cheiro da cidade que eu tanto amava, local da minha infância e da história de minha família, de meu povo. A sensação ocasionada por essa experiência tornou meus passos mais consistentes, e meus olhos atentos à rua por onde caminhava.
Havia pessoas espreitando a rua naquela hora matinal. Uma criança de uns três anos olhava do alto de uma janela. Seus cabelos encaracolados estavam embolados numa confusão de fios e de mundos imaginativos, do seu nariz escorria o catarro que deveria ser limpo pela fralda suja que segurava, mas que para a criança parecia ser mais divertido deixar embalar pelo vento como uma bandeira do que levá-la ao nariz. Será que ela sabia o que estava para acontecer nas ruas próximas a sua casa? Será que entendia a realidade em que vivia? O que seus pais lhe contavam ao dormir? Provavelmente eram contos de fadas que disfarçavam os nossos tempos sombrios. A pequena me olhou do alto, ignorando momentaneamente o vento, acenei para ela que me retornou o cumprimento: selamos um acordo silencioso de fé e esperança.
Andei mais alguns metros, e dobrei a esquina, um velho estava sentado na calçada murmurando uma música que não reconheci de imediato. Seus cabelos eram grisalhos, possuía rugas profundas nos cantos dos olhos e ao redor da boca, seus dedos calejados, e pés descalços. Pensei na velhice, lembrei de meu avô, imaginei a fragilidade da vida sendo corroída pelo tempo, o peso dos anos sobre os ombros daquele homem e futuramente nos meus. Inebriado dessa melancolia, assustei-me, quando de repente o velho se levantou e tornou seu tom de voz mais forte, alto, ainda cambaleante, o que indicava uma madrugada nos bares escondidos nas ruas mais estreitas e inacessíveis. Aquele homem lia pensamentos, era sua resposta a minha autopiedade, de sua garganta idosa ele me dava provas sobre a força humana. Mais alto:  Mais um dia, nóis nem podi se alembrá, veio os homens com as ferramentas, o dono mando derruba... que tristeza nóis sentia, cada táuba que caía duía no coração... Seus braços se balançavam, estufou o peito e berrou cada verso daquela música. Saudosa maloca, maloca querida dim dim onde nóis passemos os dias filizes da nossa vida.... Então, meio zonzo caminhou em minha direção, não me viu, passou e seguiu já não mais gritando, só sussurrava a melodia daquela música que cantou no meu peito o resto do dia.
Apressei meu passo, minha mente pregava peças e eu me atrasava para o meu objetivo. Ah, todavia eram peças tão bonitas, que aplacavam minha insegurança, que me davam confiança na escolha que tinha feito. Sentia-me inseguro devido aos meses de angústia e de opressão, mas sabia que era preciso empreender a luta, avançar, combater os inimigos cotidianos, crias do medo de liberdade.
Brecht invadiu meus pensamentos como um fantasma, e eu quis gritar para aquelas ruas vazias os seus versos, queria eu ser como aquele velho que se deixou levar pela música e um algo mais, queria rasgar aquele silêncio que era somente estremecido pelos barulhos de carros ao longe, também ser denunciador de realidades. Segurei a garganta, porque aquelas palavras me sufocavam, como um doente que segura seu vômito, e só se sente melhor ao pôr tudo para fora. Gritei:
“SUPLICAMOS EXPRESSAMENTE: NÃO ACEITEIS O QUE É DE HÁBITO, COMO COISA NATURAL, POIS EM TEMPO DE DESORDEM SANGRENTA, DE CONFUSÃO ORGANIZADA, DE ARBITRARIEDADE CONSCIENTE, DE HUMANIDADE DESUMANIZADA, NADA DEVE PARECER NATURAL, NADA DEVE PARECER IMPOSSÍVEL DE MUDAR.”
Corri, segurando aquele verso nos lábios, repetindo-o um sem contar de vezes até chegar numa rua em que várias outras pessoas surgiam, e se olhavam, iam todas para o mesmo objetivo, sussurrei para aquelas mais próximas, o verso que escolhi como meu grito de guerra. Não mais sozinho, transformei-me em um corpo único ao lado daquelas pessoas, que pareciam se multiplicar. Compartilhávamos uma energia que fluía de um indivíduo para o outro, alguns gritaram, outros subiram em árvores e falaram, tomamos a rua e construímos barricadas de sonhos.

Olhei ao meu lado, havia uma mulher que gritava: seus dentes eram brancos, sua tez negra, sua cabeça raspada, seus olhos cintilavam. Gritava, clamava, convocava a todos para entoar as palavras de ordem da manifestação. A jovem viu que eu a olhava, e demonstrei meu respeito sorrindo, o que ela retribuiu com um decisivo aceno de cabeça, um sorriso forte e uma expressão de “estamos juntos nessa”.
A ordem opressora surgiu, querendo nos intimidar e cercar. Cobri meu rosto com o lenço vermelho que minha mãe havia me entregado antes de eu deixar nossa casa. Compreendi através de seu gesto o quanto ela apoiava minha decisão, naquele lenço carreguei o seu desejo de transformação.
Como uma torrente, começamos a correr, em minhas mãos foi colocada uma pedra do tamanho de um punho; alguém sacudiu a bandeira “ABAIXO A DITADURA MILITAR”; com Brecht na cabeça e a música do velho bêbado no peito, avancei para e pela Liberdade, buscando castigar a ditadura traidora de nossa humanidade. A pedra zuniu no ar.

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