sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sob o céu


Olhei para o céu, e não havia estrelas, uma sequer que pudesse guiar meus passos madrugada adentro. Estava bêbado, não sentia o vento, nem dor, nem cheiros; mas sabia que estava perdido. Nessa noite, dediquei brindes ao mundo, às pessoas, seus risos e lágrimas, feridas e curas, à maldade e à compaixão; enfim, tive várias justificativas para me embriagar. Caminhei tropeçando, cambaleando como um aluno disciplinado dos conhaques, vodkas, vinhos baratos; e prometi aos céus goles dos melhores licores se eles e seus deuses me emprestassem uma de suas estrelas.
Nada.
Não fiquei triste, meu corpo inconscientemente dançava, e a garrafa ainda estava consideravelmente cheia. Precisava de tão pouco para me satisfazer que a perdição não me pesava o coração ou a cabeça. Eu fui, ou melhor, sou um bêbado equilibrado: não sou alegre, nem triste, porém isso não me torna o meio ou o centro de tudo. Não sei onde me situo, que substância me forma ou qual o lugar que me ocupa na tabela periódica, o que sei é que na minha embriaguez não há alvoroços de nenhuma espécie, nem de alegrias e nem de dores. O que significa viver assim? Também não possuo a mínima idéia, pois nesta madrugada meus impulsos só buscam uma estrela e, consequentemente, um caminho.
Atravesso a ponte de madeira velha e gasta. Tum, tum-tum, tum. Tambor a ressoar em meus ouvidos. Poderia o rio derrubar esta ponte? Tum, tum-tum, tum. Uma pessoa balança seus pés diante da correnteza, ela é o epicentro da melodia constante. Um velho de cabelos ralos e ensebados, mendigo. Suas mãos fechadas seguram preciosamente algo, e seus olhos alcançam o horizonte distraídos. Tum, tum-tum, tum. Bêbado sentei ao seu lado, sempre quis saber a sensação de balançar os pés no infinito. Do seu corpo tranqüilo ao meu lado, senti o ritmo da canção do tempo. Tum, tum-tum...
“De onde vem a cadência?”, perguntei em voz alta. Ele me olhou, e depois para suas mãos escurecidas que unidas por um segredo parecia palpitar. “Hoje fiz oitenta anos, e finalmente me descobri velho. Inválido estou a vinte, mas nunca havia entendido a causa de maneira científica. Quando ela morreu, tudo pareceu incompleto, no entanto, pensei que meu cérebro iria abstrair a perda, e, de fato aceitei-a. Mas com o passar dos anos algo permaneceu pesando em meu peito e estrangulando minha garganta, e não houve nenhum estudo que desse aos sintomas uma causa. Então, hoje quando me olhei no espelho e me reconheci velho, tomei uma decisão importante: mesmo de mãos trêmulas seria meu próprio médico e cirurgião. Arranquei de mim meu coração, e é ele que bate agora entre meus dedos.”
“E o que há nele, velho, além dessa música?”
“Olhe, menino, veja as notas musicais da saudade estampadas em suas veias. A ausência tatuou a falta dela no meu miocárdio para sempre. A saudade não me poupou, meu cérebro me consolou, mas nunca pôde ser capaz de me curar. Deste buraco em meu peito, escorre um rio de sangue, afluente deste que corta a cidade. Nele meu coração em breve navegará trilhando finalmente um caminho para eternidade. E quando lá chegar, será que você, criança, saberá por que deve viver?”
“Eu não sei...”
Ele sorriu.Tum, tum-tum, tum. E se jogou.
Começou a amanhecer, e no céu da alvorada uma única estrela surgiu.

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