quarta-feira, 8 de junho de 2011

Na encruzilhada

Correndo para o trabalho. A maioria corria para seu emprego, sustento, patrões, salário, expediente. Havia aqueles que somente andavam, olhavam vitrines e alimentavam o trabalho dos que corriam para cumprir a escala. Carros buzinavam, e ônibus chegavam ao Centro carregados de passageiros: estudantes em férias, trabalhadores sonolentos, líderes enérgicos. Eu também corria, na verdade era um passo apressado com destreza suficiente para não tombar em nenhum passante, ofegava por ter acabado de subir a ladeira da Getúlio Vargas, e continuava meu caminho pela avenida, rezando ao oculto para que desse tempo.
Tempo. Todos precisamos dele, mas atualmente é uma das coisas que mais nos faz falta. Passamos velozes pelos dias, ou são os dias desatentos que passam por nós? Pense no que fez semana passada, lembre-se das últimas palavras de amor que sussurrou no ouvido de alguém, pergunte-se como chegou até aqui, isto é, se conseguir tempo para isso. Em um mundo onde tudo se vende, compra, rouba; não existe tempo nas prateleiras, nem uma migalha sequer, no entanto, estamos todos calmos, acostumados a correr, desesperamos-nos por outras coisas menos importantes.
Avançando pela rua, após passar a Senhor dos Passos, a Prefeitura, as farmácias, freei meus pés, e esperei o sinal fechar com várias pessoas inquietas ao meu lado. No aglomerado de pessoas, do qual eu fazia parte, só vi um homem arrumado que transmitia uma serenidade assustadora destoando completamente do barulho de carros, pessoas e de suas expressões de estresse. Seu rosto me incomodava, dizia que parecia não se importar com a minha pressa, porque ele possuía aquilo que eu menos tinha: tempo. Três, dois, um, amarelo, vermelho. Carros parando, e nós atravessando a faixa, quer dizer quase todos nós, o senhor bem vestido parou no meio dela, enquanto pessoas corriam de um lado a outro. Eu não podia parar, precisava continuar meu caminho, mas o rosto dele segurou meus pés, olhei-o e enxerguei calma e uma busca. Era um rosto maduro marcado pelo tempo em rugas delicadas, emoldurado por cabelos grisalhos bem penteados, possuidor de olhos brilhantes que pareciam presentear a terra com lágrimas cotidianas. O sinal está prestes a abrir, os carros na primeira fila buzinam, mas ele elevou seu rosto ao céu, para segundos depois estender seu corpo sobre a faixa. Verde. Mais buzinas, os motoristas gritam, somente uma fileira de carros consegue se mover na J. J. Seabra. Penso no trabalho, em quanto aquele homem é louco e o inconveniente de seu ato, penso nas pessoas, que como eu, assistem ao espetáculo.  Gritos clamam pela polícia, motoristas ameaçam passar por cima, o dono do Chevette ameaça tirá-lo de lá a pontapés. O homem não se aflige, não tem medo, são nove horas da manhã, e ele puxa uma arma de dentro das calças. As pessoas recuam amedrontadas, o motorista inconscientemente levanta as mãos e se afasta devagar pedindo desculpas, enquanto o outro aponta a arma para a própria cabeça.
Segurei a respiração: veria um suicídio estúpido em primeira mão, e teria uma desculpa para o meu atraso. Os policiais chegam, e tentam argumentar com o sujeito deitado, em volta uma multidão espreita e espera o resultado. A resposta do cara é simplesmente: “se tentarem me tirar daqui, mato-me”. Falou essas poucas palavras com a face tranqüila, não havia medo ou desespero dos suicidas, tudo parecia calculado e certo, o que tornava toda a cena menos dramática. Perguntava-me sobre o motivo para tudo aquilo, por que aquela rua? Para quê a arma? E por que eu insistia em ver?
A TV chegou, a repórter de fala estranha começou a gravar com seu discurso sobre a situação trágica no centro de Feira de Santana. Enquanto isso, mais conversas. Um policial pede ajuda especializada, chamem um psicólogo, o médico mais importante da contemporaneidade. Eu grito: sou psicólogo, posso ajudar, deixem-me passar. Mentira. Posso ser um grande mentiroso às vezes, mas dessa vez algo antecedeu a farsa, foi uma mentira inconsciente. Não tinha idéia de porque fazia aquilo, acho que queria ver o homem mais de perto, entendê-lo, afinal ele me havia dado um atraso justificado, e eu senti uma necessidade de retribuição.
Sentei-me ao seu lado, ele nada fez ou disse, somente me olhou e depois retornou seu olhar para o céu azul com algumas nuvens. Apresentei-me, perguntei se sentia bem, sua resposta indicava que estava bem melhor agora, continuei tentando entabular uma conversa, todavia o homem não mais respondia. Meu corpo por impulso se deitou próximo ao dele no asfalto relativamente quente, minha mente buscava as respostas naquilo que ele via, por trás daquelas nuvens encorpadas estaria escondidos seus segredos, medos, desafetos.
Pensava em quem era aquele homem, no que o levou até ali, imaginei se não era um assassino buscando expiação dos pecados de uma maneira estranha; baixei meus olhos para sua mão esquerda, e percebi por alguma intuição humana secular, que não era a mão de um assassino. Refleti então se não era eu a pessoa a buscar o perdão, olhar os céus na tentativa de encontrar anjos da relatividade que fizessem o tempo passar mais devagar, caso eu fosse um bom menino, caso preenchesse minha vida de maiores significados re-aprendendo a sentir o sabor das comidas, o cheiro das pessoas, o toque de quem se ama. O homem lunático deitado na faixa de pedestre mudava minha vida.
Enquanto me perdia nas minhas próprias reflexões, o homem me sussurrou: “será que foi este o mesmo céu que ela viu naquele dia?”. Eu estranhei e perguntei sobre quem ele falava, todavia somente continuou: “algumas semanas atrás, ela estava aqui deitada neste local, não numa posição mais confortável que a minha, seus membros estavam numa posição estranha como em um quadro mal calculado. Seu peito subia e descia rapidamente na busca desesperada pelo fôlego, e seus olhos tão abertos não me viam, fitavam somente esse céu semi-emoldurado por fios elétricos. Queria me permitir a mesma visão de sua morte, ela tinha 15 anos”.
Então, compreendi o mistério. Levantei-me e, enquanto, dava as costas, aquele homem destravou a arma e puxou o gatilho. Sua mão matara, não por desejo, ardor de presenciar um corpo morto, mas por pressa, ela atropelou as pessoas em seu caminho. Ele escolheu assim matar novamente agora por sua própria vontade, serenamente caminhou pelas ruas achando percorrer o mesmo caminho que a garota, deitou-se na rua, comprendeu algum segredo humano e existencial, optou morrer. Quanto a mim? É óbvia a resposta, não?

Nenhum comentário:

Postar um comentário