Acordei cansado e atrasado, precisei correr para o trabalho, e tive que me contentar com o café doce e morno-frio do Instituto. No entanto, não me sinto de mau-humor, só resignado por estar aqui, no fundo não gostaria de ter me levantado da cama hoje, nem ontem e acredito que amanhã não será muito diferente. Essa sensação virou rotineira, e já não me incomoda mais, aceito como fato dado, algo natural. E assim sigo meus dias sem grandes complexos e sem culpas pela ausência de reação.
É meia-noite, e meu turno termina no início da manhã, por ser feriado somente eu trabalharei em meu setor hoje. Encaro a porta do laboratório de necropsia respirando fundo até ouvir risos abafados sem seu interior.
_Tsc...
O Andrade trouxe outra de suas “namoradas” malucas, uma daquelas mulheres que vêem um morto e depois transam cheias de êxtase e fúria como se fosse para provar a si mesmas que, ao contrário do cadáver que viram, estão realmente vivas. Eu entro, não posso mais esperar pelas preliminares alheias. Dou de cara com um homem de cinqüenta anos, agredido pelo tempo mais emocional do que fisicamente, de traços vulgares e vocabulário repleto de segundas intenções e trocadilhos, que tenta roubar um beijo de uma morena quaretona com alguns fios grisalhos vestida como uma menina de quinze anos.
_ Quem é ele, Andrade? Você não me disse que teria alguém aqui.
_ Ah, belezoca, esse daí é só nosso garoto do Instituto. Tiago, esta é a Célia. Pequena, este é o Tiago.
Sem olhar para ela, aceno em sua direção. Mudando-se as mulheres, essa cena já me era recorrente.
_ Tiago, tchau, já vamos indo. Eu e essa garota vamos curtir a noite toda hoje, de todos os jeitos e posições._ Ele ri, e a “garota” finge um constrangimento que não possui.
_ Não fala isso pro menino, Andrade. Um beijo, garoto, nos vemos por aí.
Estou só, e me sinto melhor do que poderia estar na companhia de alguém. Olho as fichas do dia. Andrade me deixou um corpo já em avaliação para que eu terminasse. Abomino seu desleixo. Não queria terminar seu serviço, simplesmente porque trabalhamos diferente, mas não posso fingir que não há um cadáver em cima daquela maca recoberto por um lençol, então me dirijo a ele.
Puxo o pano, e encaro uma jovem loira numa relação indiscutivelmente unilateral, seu nome na ficha é Amália, tinha 27 anos. Olho seu rosto tonalizado pela morte, levanto uma de suas pálpebras, e tento ler nas manchas castanhas de seus olhos azuis a trilha sonora de sua vida. Sempre faço isso antes de começar, é como ler a borra de café em uma xícara e adivinhar o futuro pelas marcas do que foi bebido; no meu caso busco o que se foi e não possui retorno. Toco seus dedos manchados pela tinta presa nas digitais, e em meu íntimo acredito conhecer sua música tema. Há uma semana tinha escolhido AC/DC para um alcoólatra vítima de um ataque cardíaco, por quê? Não sei, ele só me parecia ter caminhado pelo inferno um tempo. Caminhei até o rádio, e o desliguei da tomada. Para Amália, a música era o silêncio.
Andrade já havia analisado seu cérebro e a maior parte de seus órgãos internos, faltava dar o parecer de seu coração e pulmões. Não tive muitas conclusões a mais para incorporar a avaliação dele, e depois de dedicar quase duas horas a pensar sobre sua causa mortis, empreendi o exercício de dar sentido as marcas de sua vida. Refleti sobre a raiz de seu cabelo não retocada, se seria somente desleixo, falta de tempo ou um projeto futuro de mudança. Inventei uma história adolescente para seu segundo furo na orelha, algo a ver com pacto entre meninas de amizade eterna. Na cicatriz do seu queixo, encontrei a lembrança de uma criança levada que fugia das professoras para brincar. Seus pulmões me revelaram uma nadadora formidável. Em suas coxas, a marca dos dentes, um amor passional, profundo e extremo. No ventre, a marca da cesariana de um filho já nascido morto.
Procurei por todo seu corpo as possíveis histórias de sua vida, divaguei e filosofei sobre suas boas e más decisões para que eu não esquecesse sobre o que significa viver, para que eu não me deixasse levar pela grandiosidade da morte querendo tornar a vida pequena. Para que eu aprenda morrer todos os dias e seja capaz de fazer minha própria necropsia, verdadeiramente autópsia. Filósofo de mim, sem mais resignação, morto-vivo para o engrandecimento da vida.
_ Obrigado, Amália, por seu pedaço de silêncio.
Gostei.
ResponderExcluirVocê escreve muito bom, Carol
ResponderExcluirBoas festas pra ti. Abraço.