segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

A ti...

Dedico-lhe esta história que ganha maneiras estrangeiras e íntimas, e existe sob forma de antíteses para poder revelar um pouco de quem sou, sobre o mundo que experimento e vivencio. Nessas linhas meio apagadas, debruçarei minha caneta e permitirei escorrer a tinta desenhada pelo movimento de minha mão. Não há o cuidado da escrita japonesa, não existe o pictórico na forma em que escrevo o jota ou qualquer outra letra, no entanto, na conexão que se segue de uma palavra a outra mora uma confissão imagética. Não é minha, não é sua. É um desabafo de sofrimentos revelado nos burburinhos da cidade que não descansa, é um poema unívoco que liga diferentes pessoas. Em qual frase, ideia ou parágrafo você irá me encontrar e se reconhecer?
Cumulosnybums by Deviantart
Ao ouvir o mundo, eu vi uma mulher. Sentidos que se complementam. Ela era linda na simplicidade de sua postura, na composição de seus cabelos, olhos, boca. Vívida, mas frágil. Havia um leve tremor em suas mãos. Na mulher ruiva do balcão do guarda volumes, vi e ouvi sua face; na criança acomodada no carrinho de compras, seu caminhar; na velha a carregar o cesto, suas mãos frágeis. Entre os corredores do supermercado me disseram que ela era toda vida, mas suas mãos estavam doentes. Se seu sorriso era um exemplo perfeito de saúde, seus dedos carregavam o peso de gerações: eram mãos idosas em um corpo jovem.
Isso a entristecia, ela não era boa em falar, articular seus pensamentos com a língua. Ela necessitava escrever, mas suas mãos não deixavam, borravam e machucavam o papel, crime que a frustrava. Há muito tempo ela não escrevia uma carta de amor ou de despedida, o senhor que olhava a prateleira de vinhos me contou com seus olhos. Senti pena pela impotência da mulher das mãos calejadas e gastadas. Queria ajudá-la, mas como? Procurei nos rostos dos transeuntes que faziam compras, observei as mãos que as pessoas levavam as prateleiras, e somente encontrei sujeitos que continuavam a narrar à história da mulher. Decidi então anunciar minha intenção, nos meus gestos e movimentos diários contei a todos que gostaria de salvá-la, eu guardava a cura; tinha mais que confiança nisso, eu possuía fé.
Fui ao caixa, passei lentamente compra por compra, notando que todos me perseguiam com os olhos, na expectativa de que a salvação chegasse e os confortasse. Transformei cada segundo em minutos, somente esperando. Conseguistes me ver diante do caixa a buscar motivação na expressão da funcionária que me atendia?  Tu encontraste nos meus olhos castanhos o desespero do não-encontro?
Embalei minhas compras, o remédio que carregava seria desperdiçado quando colocasse meu pé para fora do estabelecimento. Caminhei sob os olhares fúnebres de todos, e, na fronteira da porta, fui abordada por uma mendiga que me pedia auxílio. Ao me estender sua mão, pude ver os mesmos dedos medrosos e feridos da mulher que enfraqueceu meu coração, então, ao invés de moedas, depositei em suas mãos beijos temperados de esperança. E já transformada em si mesma, não mais pedinte, olhou-me com mais cuidado, e pude então enfim dizer:
"Minhas mãos são tuas, meu espírito compartilha de seus sentimentos, e minha mente está voltada para ti. Entregue-me seus pensamentos, deixe que eles guiem meus dedos, e escrevam o que você já não pode mais."
"Confesso, mea culpa...", sussurrou-me, e na sua aquiescência e entrega todo conjunto do supermercado relaxou e reencontrou sua rotina modificada. Ela se dissolveu em todos nós.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010


Quero vomitar-me de mim...
Falta de educação é prender o que se tem na alma
Não queria mergulhar tão fundo
Queria ficar apenas na superfície
Molhar meus pé s e ficar à beira da praia
Observando o navio passar
O oxigênio me falta
Afinal, como consegui chegar até aqui
Se eu nem ao menos sei nadar?
Escrevo porque escrever salva...
Essas palavras me sufocam
Estou ficando sem ar
O vazio imenso dessa escuridão insuportavelmente pesam em meus ombros
Vem melodiosa sinfonia, me leve e não me deixes voltar...

sábado, 18 de dezembro de 2010

Quando a Liberdade chegar

The_Hanged_Man_by_Lyekka 

Vivemos em grandes prisões: uma sentença óbvia. Escola, família, o amigo sentado ao lado, o amante pretensamente despreocupado; tudo nos aprisiona de alguma forma. No fundo, todos nós sabemos que somos talentosos fingidores de liberdade, é quase uma condição existencial humana, está imbricado em nossa natureza social.

Hoje me perguntei o que aconteceria se a Liberdade retornasse a nós. Mendiga, descabelada, suja com olhos atormentados, menina desprotegida que nunca teve pais ou irmãos. Será que ela se agarraria a mim e me suplicaria cuidados? Ou jogaria em minha cara o seu abandono? Ou seria eu a vítima a lhe acusar solidão e querer lhe atribuir um castigo?

Punição, sou deus a atormentar a pequena Liberdade pelo seu atraso. Anos de luta, uma vida dedicada a ela sem receios, somente ansiando o primeiro encontro. No fim, no meu ponto final experimentado e realizado, quando nos encontrarmos, serei um ser frustrado a lhe dedicar xingamentos e ofensas? Ou estenderei meus braços e a envolverei no mais terno abraço?

domingo, 12 de dezembro de 2010

A palavra vermelha

A meus amigos do CLE

Finalmente o sábado havia chegado, podia respirar mais calmamente e me alegrar com a possibilidade de rever meus amigos. Tínhamos o costume de sempre nos encontrar no primeiro sábado de cada mês para beber e conversar sobre diversos assuntos. Bebendo e ouvindo-os eu me sentia o mais conectado possível a este mundo, nossos encontros tinham um peso de uma lei, que nunca seria capaz de subverter ou descumprir, era uma questão de honra pessoal.

Todas as nossas reuniões eram diferentes, conseguíamos ir de um quadro de Picasso a um livro de Virginia Woolf, para um passo depois chegar ao assassinato de uma família inteira, página principal do jornal diário, tudo isso com uma grande facilidade, as conversas simplesmente fluíam. Meus amigos representavam minha válvula de escape, deles eu nada escondia: nem meus argumentos fracos, meus defeitos mais vis, meu coração quando despedaçado, ou meu riso preenchido de felicidade.

Neste sábado, havia algo que não pude escamotear. Era o tormento de meus sonhos recentes, que arruinavam meus nervos e fragmentava minha mente. Cansado das noites insones, encaminhei-me ao bar que simbolizava nossa ágora, alguns haviam chegado, éramos um grupo um tanto grande, às vezes alvoroçado, em outras, sóbrio. Iniciei meus cumprimentos repletos de abraços, beijos e leves batidas nas costas, e imediatamente pedi um whisky. Enquanto os outros chegavam, distribui sorrisos e me acerquei das últimas novidades sobre trabalho e família dos meus companheiros, no entanto, fui inapto na tentativa de acobertar as olheiras, os ombros caídos, a voz rouca e o leve tremor nas mãos.

Augusto, o mais perceptivo de todos, mas também o de maior curiosidade, logo me interrogou sobre meu estado, que fugia enormemente da minha resposta seca de “bem”. Respondi que era somente o resultado de algumas noites sem conseguir dormir direito, assolado por um mesmo pesadelo infindável. Todos os olhos da mesa se pousaram em mim e indicavam que uma pergunta muda no ar pairava, então, como resposta, prossegui contando-lhes o sonho.

“Não entendo, porque ando sonhando com isso. É uma história boba, que meu avô me contou anos atrás; e se olharmos por certo ângulo não há nada de assustador nela, todavia, após sonhá-la, acordo banhado em suor e meus olhos custam a se fechar novamente. Quando fiz quinze anos, meu avô me chamou em seu quarto, e disse ter um presente especial para mim. Empolgado, tentei adivinhar que presente seria esse: uma viagem? Um relógio de ouro? Um livro raro? Ele simplesmente balançava a cabeça em negativa e sorria. Enfadado com meus chutes e comovido com minha frustração em não conseguir desvendar o presente, ele se levantou e pegou uma caixa de madeira negra entalhada com o brasão de nossa família em tempos antigos. Sentou-se a minha frente e colocou a caixa entre nós dizendo que eu só poderia recebê-lo depois de ouvir sua história. Óbvio que concordei, estava curioso não somente em relação ao objeto que a caixa guardava, mas também porque aquele momento parecia solene e preenchido de mistério.

Sua voz antiga iniciou a história nascida num tempo distante, cerca de dois séculos atrás, era sobre um cavalheiro chamado Édmond Couvier, antepassado de nossa família. Couvier era um rapaz dado aos estudos e às farras, sua família tinha um título nobre, e não possuía pudor em manter suas posses da forma que fosse, seja por arrendamento de terras ou pelo comércio marítimo, algo que a diferenciava das outras famílias da Corte. Lembrem-se dos livros da Jane Austen, e insiram um personagem nobre, liberal e sem pudores: eis a imagem do meu parente longínquo. Em uma de suas noites de beberagem nas ruas sujas de Paris, Edmond conheceu um jovem bonito de feições audaciosas chamado Bartolomeu. A sintonia entre ambos foi imediata, Bartolomeu demonstrou ser bastante inteligente e perspicaz ganhando rapidamente a admiração e confiança de Édmond.

Os dois iniciaram uma amizade intensa, viam-se sempre, a única sombra que pairava entre eles era um segredo mantido por Bartolomeu. Esse sempre viajava por quatro dias para um lugar desconhecido, uma vez a cada mês, sem nunca dizer a Couvier, onde esteve, o que fazia ou com quem estava. O amigo sempre respeitou seu segredo, mas não conseguia impedir de se sentir intrigado. Até que decorrido três anos desde a primeira vez que se encontraram, Bartolomeu propôs a Édmond que o acompanhasse na próxima viagem. Nesse momento da história, meu avô suspirou, e bebeu um pouco de água.”

_ Assim como você bebe seu Whisky agora_ , disse Ariadne, sorrindo para mim. Todos meus amigos prestavam atenção a minha história, e isso me fez relaxar um pouco.

“Enfim, segundo meu avô, eles viajaram durante dois dias, até chegarem às terras extensas de um barão, cujo nome se perdeu da memória de minha família, que os recebeu com grande amabilidade. Couvier foi levado a um quarto e informado de que logo a noite haveria um jantar. Meu parente notou que na cama de seu aposento havia vestes elegantes e uma máscara preta simples que cobria a região dos olhos e nariz, deixando visível somente os lábios. Apesar de surpreso por Bartolomeu não informá-lo sobre o caráter da reunião, Couvier entendeu aquilo como bizarrices de um nobre entediado, e resolveu experimentar a brincadeira.

Chegado o momento do jantar, Édmond encontrou Bartolomeu vestido da mesma forma que si, também portando uma máscara. Caminharam até uma saleta de tamanho considerável, onde se depararam com um número de pessoas próximo ao nosso grupo. Homens e mulheres que conversavam de forma animada, riam e discutiam em baixo e alto tom; todos bebiam vinho e recepcionaram bem meu “tio” distante. Até aqui, não tinha visto nada demais na história do meu avô, e já estava me cansando de tanta ladainha, quando ele disse que tudo parecia comum e real, até a chegada do jantar.

Sentado a mesa do barão, sentindo tanta fome, Couvier salivava a espera da comida que se antecipava através do cheiro, uma série de criados entrou na sala de jantar e depositou as bandejas fechadas diante dos convidados. Quando a tampa foi retirada, Édmond se sentiu um homem frustrado e irritado, porque o que havia dentro dos pratos era nada mais nada menos que diversas páginas de livros antigos manuscritos. Olhou de Bartolomeu até o anfitrião pedindo que a comida de fato fosse trazida, até perceber, para sua surpresa, que todos na mesa comiam despreocupadamente aquelas folhas, sem se importarem com sua fisionomia e irritação. Pareciam irracionais que se deleitavam com talheres cada palavra mordida, frase mastigada, cada pensamento engolido. Eles não viam mais ninguém, soltavam gemidos de prazer e comiam, comiam sem parar. Mais páginas eram trazidas, e Édmond se levantou com horror diante daquele espetáculo, se aproximou de Bartolomeu dizendo que iria se retirar, quando notou um fio escarlate que subia pelo pescoço do amigo, percorrendo lentamente a trajetória da jugular até alcançar suas faces. Assustado, olhou mais de perto, e percebeu que aquele vermelho que brilhava e tomava conta do rosto, mãos, corpo, era na verdade um fio de palavras escritas em uma letra floreada, a letra de seu próprio amigo, que dizia:

Quando conquistou tudo o que todos querem cortejar, a pobre recompensa não valeu os custos: juventude desperdiçada, alma aviltada, honra perdida, são os teus frutos, ó paixão triunfante!”

Olhou ao redor, viu o mesmo efeito no rosto das mulheres e homens presentes, as letras se diferenciavam, e também as cores, umas negras, azuis; outras, douradas, verdes. E, quando nada podia parecer piorar, as palavras encontraram o caminho dos lábios, e todos pararam de comer para poderem escoar as palavras de seus corpos. Uns gritavam, cantavam, outros vomitavam, as moças mais recatadas sussurravam, os que escreviam poesia declamavam. Os criados nada faziam, e Édmond assistiu tudo extático. Nunca se soube quanto tempo durou o “recital”, mas o que meu avô disse sobre quando o silêncio foi instaurado, é que Couvier correu com toda energia de seu corpo, subiu em uma das carruagens e voltou para casa de sua família, sem nunca mais procurar Bartolomeu, que, no entanto, encontrou uma única vez depois do episódio, quando foi comprar um mimo para sua recém-esposa e foi observado pelo mesmo da janela do estabelecimento. Bartolomeu somente sorriu para depois se perder na multidão das ruas.”

_ Mas, enfim, o que havia dentro da caixa?_, Eleonora me perguntou ansiosa.

_ Um garfo...

Meus amigos riram divertidos, sem me levarem a sério.

_ É a mais pura verdade, meu avô disse que Édmond o segurou durante todo o jantar, e fugiu com ele, sem se dar conta que o carregava. E desde então é passado como o maior tesouro de nossa família

Também ri diante da situação, minha história e meu pesadelo ganharam ares cômicos por causa de um garfo. Na mesa, somente Ariadne sorria me sondando com o olhar, apoiando seu queixo em suas mãos, foi quando imaginei ter visto em seus dedos entrelaçados um laço escarlate que parecia se movimentar...

_ Ô, garçonete, traz um garfo aqui para nosso amigo_, gritou Augusto.

Todos riram, menos eu, pois a palavra vermelha havia se perdido dos meu olhos...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010


Teu silêncio cortou meus pulsos
Tua voz fria afogou-me num lago congelado
Teu olhar distante me invadiu de narcóticos coloridos
Tua falta de amor deu um tiro certeiro na minha cabeça
Teu discurso lógico lançou-me do terceiro andar

Meu coração está no forno
Preparei com carinho para o teu jantar

As folhas caem como nas árvores de outono, caem desordenadamente e não consigo juntá-las. O vento sopra e deixo-as correr livremente pelos campos. Mas cuidado com as folhas de outono, são leves, muito leves, talvez não possas suportar tamanha leveza. O vento sopra de novo, é hora de voltar para casa e aquecer-se ao lado da lareira. Depois dormir, dormir docemente antes que a noite caia. Caia levemente como as folhas de outono.


Ocorre um anúncio: o aviso da Natureza. É preciso prestar atenção aos sinais ao redor. O mundo transforma-se, o vento sopra diferente, preparando-te para esse encontro casual na virada do quarteirão. Mas calma, nada de superstições, é só a Natureza falando baixinho ao teu ouvido. Livra-te de tantos barulhos, tapa os teus ouvidos e assim a podereis escutar.



quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Pandora

Sinto um engasgo na garganta, e sei que se nesse exato momento ela fosse cortada, mais que sangue sairia da ferida. Do corte aberto extravasaria meu ser despedaçado em angústias, no formato de soluços descompassados finalmente libertos. E nos pedaços capazes de alcançar o chão ou flutuar perante os olhos, os passantes poderão vislumbrar as memórias dilaceradoras, os desejos frustrados, as esperanças ressequidas, os medos alimentados na madrugada solitária. Minha garganta, minha caixa de Pandora. Serei capaz de costurar o rasgo, antes que perca aquilo que de bom há em mim?


domingo, 21 de novembro de 2010

Um mosaico para nós


Como consertar algo que se quebrou? Uma concha que se fragmentou poderia ecoar as palavras do mar? Um copo de fragmentos colados poderia dar alguém algo de beber? Uma alma quebrada consegue ter identidade? E um coração partido, dividido continua a bater? Sabe, filha, nem sempre temos dimensão da profundidade do nosso erro no outro; no entanto, isso não nos impede de tomar suas mãos nas nossas e dos pedaços que nos sobraram construir um belo mosaico...

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Sorriso de civilidade

Ela volta-se para trás com a terrível certeza do que irá avistar. Seu coração nunca mente; num instinto de automutilação ela quer ver, ela precisa ver o que se passa ali, logo ali, no balcão atrás de si. Seus amigos conversam. Ela sorri, responde, pergunta e discretamente observa os pedacinhos de seus sonhos flutuando em frente aos seus olhos, sendo levemente carregados pelo vento e misturando-se a fumaça dos cigarros à sua volta. Eles caem no chão como as folhas de outono. Ela chora lágrimas invisíveis, mas o seu rosto exibe um sorriso de mulata em dia de carnaval (ela é tão bonita sorrindo!). Oh! Abram alas que ela vai passar...


Ela levanta-se, tenta ir embora, despede-se, cumpre as formalidades de pessoas educadas e a civilidade a obriga a ficar. Sentindo que seu coração não cabe mais em um corpo só, quer correr livremente pelas ruas da cidade gritando, procurando por alguém que aceite o convite “Deixe-me dividir com você o meu coração”. Mas, ela senta, espera e sofre, ou seja, vive. Só aos loucos é permitido agir espontaneamente. Enfim, ela se vai sozinha e ele fica. Acompanhado e feliz.


No dia seguinte ele lhe sorri e ela sorri de volta, um sorriso de complacência, de aceitação. Dessa vez, ele se vai, mais feliz do que nunca esteve em sua vida. Essa felicidade lança-se contra o peito dela como uma faca de serra desgastada pelo uso, fazendo suas forças se extinguirem como o gelo que aos poucos desaparece no seu copo de whisky, e o whisky também desaparece. E ela fica. A Lua indiscreta revela o seu segredo. Exibe cruelmente as suas lágrimas, fazendo-a admitir a sua humanidade.


E ela descobre essa noite que não é um anjo, ela não sabe mais voar.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Atrasos e reflexões


Ahh, cara, odeio gente que se atrasa. É muito egocentrismo, pois o mundo não gira ao redor daquele que não tem a decência de chegar no horário. Falta de educação não deveria se tornar um hábito, mas isso é justamente o que acontece com ele. Enquanto isso, vou passando meu tempo impacientemente sentado nas cadeiras de cafés e bares que sentei por toda minha vida, esperando certas vezes em vão.
Sentar e esperar é a pior fórmula para pensamentos reveladores. Sozinho com você mesmo e um tempo incapaz de ser medido, certas idéias sobre desejos íntimos e a vida banal alheia parecem brotar como sementes nas terras do paraíso. Começo sempre pensando como a vida dos outros é melhor que a minha. Sabe aquele pensamento de que para eles tudo acontece mais fácil, e que eu sou um enjeitado do mundo, rejeitado e marginalizado impedido de viver o bom que presumivelmente a realidade pode oferecer?  Ah, vamos lá, eu sei que você me entende, todos temos a nossa cota de drama existencial.
A questão é que seria muito fácil e comum viver a sina do pobre coitado, mas dependendo do atraso, essa coisa sofre uma mutação tal que o pensamento inicial vira uma coisa totalmente adversa. Quando você começa a se convencer de que a grama do vizinho é mais verdinha (o que no nosso sertão é algo que de fato chama atenção), nos assalta o sentimento óbvio de fraqueza: o verde do outro é mais legal, porque é mais difícil assumir que se é um péssimo jardineiro. Sei que parece uma conversa auto-ajuda, mas convenhamos qual ser humano que caminhou por sobre estas terras que nunca duvidou de si? Do que poderia fazer? E depois de tal reflexão se sentiu miserável e pequeno, um sem valor? Ser responsável pela própria felicidade é uma missão complexa e inevitável, então, um conselho: vamos compartilhar nossas infelicidades, pois aí teremos assunto deveras.
Claro que não é necessário estar esperando alguém para se refletir sobre isso, no entanto o que eu aprendi, enquanto esperava sempre a mesma pessoa, é que reflexões do tipo se tornam corriqueiras, mas nem por isso ausentes de intensidade, é como aquele beijo roubado durante a adolescência _ninguém pode ver, dura pouco, todavia arrebata todo o ser.
Uma pessoa sã, no auge dessa nossa conversa, deve me imaginar como um lunático que sofre esses processos por livre arbítrio, afinal bastava me levantar e ir embora. É, seria fácil se eu não esperasse quem espero; e de todo mais, quando o atraso é maior, às vezes sou assaltado por pensamentos mais otimistas. Perceber que meu sofrimento não é único nessa terra de deuses alivia. Sei que do meu lado neste balcão há pessoas que compartilham as mesmas dores que eu, às vezes trocamos olhares cúmplices, e lá no fundo do copo ou no último gole de café sinto até o sabor da esperança. Então, anseio por uma chegada, por acontecimentos agradáveis, um futuro abençoado, risos incontidos, um mundo melhor salpicado de sonhos.
Ser gente é isso, viver e pensar os extremos. Por isso, nos atrasos daquele que não chega, mas está por chegar, vou vivendo grandes momentos de humanidade que antecedem o ápice da existência configurado na porta da cafeteria que abre, na mulher de beleza própria que entra, em seu sorriso constrangido ao perceber meu olhar, na timidez ao se sentar ao meu lado no balcão, na ânsia de que eu pergunte o seu nome. Pois é, meus caros, o Amor chegou, e só assim percebo que nada é em vão.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Sobre degustações...

 
Existe algo em mim hoje que pede para sair, abandonar-me, talvez seja uma nova história, não sei bem, tem tanto tempo que não escrevo. Tive vontade de sair, de fumar um cigarro. Será que amanhã todas essas vontades ainda estarão aqui percorrendo minha corrente sanguínea? 
Quem sabe? Às vezes é interessante não ser o dono das respostas, ou das verdades iluminadas, um ser com uma boa imaginação pode explicar a realidade da maneira mais fantasiosa que já existiu, seus neurônios fabricarão uma razão para o real, que o tornará saboroso, apreciável, manjar dos deuses.
Se minhas células cerebrais trabalhassem bem, em ritmo vigoroso e com o volume de um rio caudaloso, eu seria capaz de acordar pela manhã, olhar meu quintal pela janela e, consequentemente, salivar. Caminharia a passos lentos pela casa em busca da porta da rua, e, escancarando-a, encontraria nas pessoas caminhando, na árvore balançada pelo vento, no ônibus barulhento virando a curva e no meu cachorro fujão voltando para casa, todo o meu café da manhã.
No entanto, eu só e simplesmente acordo, buscando nas propagandas televisivas o dia em que anunciarão o treinamento físico para as sinapses perfeitas. Otimista como sou, acredito que um dia não mais sentirei fome do mundo, pois então, como animal humano, finalmente, poderei funcionar. Sentirei, comerei, beberei, passarei mal, serei um pouco mais feliz com meu estômago existencial preenchido. Um dia experimentarei um novo doce do mundo, deixarei ele derreter sob minha língua de pensamentos, escorregar pela garganta do meu cérebro, ser dividido, reduzido a partículas cada vez menores, enviado ao meu sangue, bombardeado direto para o coração, que adora se afogar no mundo partido e modificado pelo suco digestivo da imaginação. Em outro momento qualquer, mastigarei rapidamente a comida azeda de vários dias provenientes dos gestos malévolos, das ambições desmedidas, mesquinhez e inveja dos espíritos fracos, porque é necessário conhecer todos os sabores dessa realidade que pode ser tão desconexa.
E quando tudo for assimilado pela minha cabeça e corpo, perceberei que é preciso se autodigerir, viver o canibalismo de si com sofreguidão, profundidade, experiência. Refletir-se, imaginar-se, ser seu próprio alimento-partícula-mundus numa realidade tempo-espaço que não se abandona, seres humanos não sobrevivem no vácuo; uma questão de dialética e física, respectivamente.

Entregue-se...

  Corra, corra, venha ouvir o blues, afogar-se na melodia do melancólico e belo. Se entregue a essa sensação revelada por seu coração, que se aperta e desafoga em questão de segundos. Ouça com atenção, deixe seus ouvidos se tornarem as portas para a música do alívio e da confissão. Teletransporte, veja o bar enevoado pela fumaça dos cigarros, Count Basie está ao piano, tocando sem perceber ninguém. Ele se torna membro do instrumento, é parte dele pela eternidade. Os burburinhos preenchem os espaços deixados pela música, são sussurros leves que viram parte da composição do ambiente. Caminhe até o balcão, olhe profundamente para o garçom, e peça um gim. Sente-se. Olhe a bela mulher do outro lado do salão cruzando as pernas, parece que tudo naquela noite foi feito para ela. Olhe sem medo, aproxime-se com o olhar, toque-a a distância, deixe que ela perceba e queira mais. Dissolva-se no espaço, você é a fumaça expelida pelos lábios rubros da dama, a bebida que lhe atravessa a garganta, a música nas cordas do piano, nos dedos de Basie, nos ouvidos perfumados da mulher de negro.
 
   Levante, e tire-a para dançar, segure seus dedos e encontre sua cintura, ambos os corpos que se arrepiam. Conduza-a, sinta o perfume de seus cabelos, deixe sua respiração falar baixinho palavras eróticas no pescoço dela, permita se excitar. Você é ela, o piano, a música, o hálito de gim, o vestido decotado que revela e esconde a beleza dos seios. Tu és tudo, mil partículas, tu és nada, e hoje, não há do que se arrepender.


Um poema para um amor

Densas nuvens negras escondem-te de mim
Mas como um mar impetuoso
Valente tu tornas a vir
Estou do alto admirado
Fascinado a te contemplar

Diana não me abandone
Só tua presença me faz repousar
O que me importa uma eternidade de sono
Se contigo posso sonhar?

Suplico humildemente ao Sol
Que não ilumine o meu dia
A noite escura me completa
É meu consolo nessa vida vazia.

Luana Reis.


“Ocorreu uma noite, enquanto Diana caçava no Monte Latmos, o jovem pastor Endimião estar adormecido ao lado do seu rebanho. Muitas vezes ele tinha visto a deusa de longe, um tanto assombrado de uma criatura tão bela e, ao mesmo tempo, tão implacável. Diana nunca tinha notado a beleza encantadora do jovem. Ela considerou-o tão perfeito quanto o seu irmão Apolo, talvez mais perfeito ainda, pois seu rosto adormecido voltado para cima tinha o encanto prateado da sua amada lua. Uma paixão ardente e abrasadora teria nascido aos raios ardentes do sol, mas o amor que então nasceu sob a luz pálida da lua era uma paixão mágica.

Quando Endimião sorriu no seu sono, ela ajoelhou, e, curvando-se, beijou os seus lábios com delicadeza. O toque da luz do luar não era mais delicado que o toque de Diana. Não obstante, foi suficiente para acordá-lo. Porém, demorou-se no sono querendo prolongar aquele êxtase de felicidade tão perfeita que experimentara. E antes que os seus olhos adormecidos pudessem ser a testemunha dos seus sentidos, Diana apressou-se em fugir dali. Endimião levantou-se num salto, mas viu apenas o rebanho adormecido, e ouviu o que lhe pareceu ser o ladrar de cães em plena caça na floresta ao longe no topo da montanha. Voltou a deitar-se esperando que mais uma vez esse milagre lhe fosse concedido. Nenhum milagre mais lhe sobreveio; sequer pôde voltar a dormir, tão intensa era a sua emoção.

No dia seguinte, nas horas abafadas em que Apolo conduz a sua carruagem reluzente ao longo do céu, Endimião, enquanto pastoreava o seu rebanho, tentou pelo sono reviver aquele encantamento uma vez mais, e desejou que o dia logo findasse e o frescor da noite escura voltasse. Quando anoiteceu, tentou permanecer acordado e ver o que poderia acontecer, mas logo o bondoso sono fechou os seus olhos cansados, e

Veio-lhe a encantadora visão de uma virgem,
Ela vinha num carro dourado
Que descia da lua suspensa no céu.
Lewis Morris

Chegou então a noite em que os sonhos de Endimião não mais tiveram fim. Foi uma noite em que a lua fez para si mesma um longo caminho de prata pelo mar, desde o distante horizonte até à praia onde as ondas encrespadas batem numa luminosa e sempre ondulante orla prateada. Prateadas eram também as folhas das árvores do bosque, de onde entre os galhos dos ciprestes sagrados e os imponentes pinheiros Diana lançava suas flechas de prata. O ladrar dos cães não veio inquietar o sono das ovelhas de Endimião, eram as estrelas luzentes que pareciam cantar no alto céu. Enquanto ainda aqueles lábios delicados o tocavam, as mãos ergueram delicadamente Endimião adormecido e levaram-no para uma caverna secreta no Monte Latmos. Ali, para sempre, ela vinha beijar os lábios do seu amado adormecido. Ali, para sempre, dormiu Endimião, feliz envolvido no êxtase perfeito dos sonhos que jamais terminam. ”

Adaptado de Jean Lang - Mitos Universais

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Você toma café e eu tomo chá!!




Não me venha com seus teoremas científicos enquanto falo de sentimentos. Meus motivos para não tomar café são bem simples: não gosto do aroma que tanto te fascina, não gosto do sabor forte que te inspira um cigarro e por fim, não gosto da dor de cabeça que causa a sua ausência. Sim, gosto de chá...


E, por favor, poupe-me de tuas tentativas de me definir, de descrever minha personalidade. Não gosto de chá porque sou calma. Se me olhasses de perto verias que sou desequilibrada, e por que não dizer histérica, nervosa e impaciente? Será isto resultado da cafeína?...Não, não quero falar sobre isso.

Permita-me o simples direito de tomar uma boa xícara de chá sem pensar em quem eu sou ou deixo de ser. Permita-me este momento de prazer cotidiano sem a tua metafísica. Belamente já disse Pessoa “Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.”


Não me julgues por um ato tão simples e cotidiano. Tu gostas de café, bebe-o. Aprecia teus bons momentos de abstração, contemplação e prazer. Eu tomo meu chá e continuo sendo.

Les amants d'un jour

By diferrent (Deviantart)



"Moi, j’essuie les verres
Au fond du café
J’ai bien trop à faire
Pour pouvoir rêver
Et dans ce décor
Banal à pleurer
C’est corps contre corps
Qu’on les a trouvés…"


"Eu, eu esfrego os copos
Um fundo de café
Tenho muito o que fazer
Poder sonhar
E nesta decoração
Banal a chorar
Corpos contra corpos
Aquilo se achou..."

Edith Piaf

Para começar...

By Kkarasu (Deviantart)

Necessito morrer pela palavra, afogar-me em frases compostas pelo meu íntimo, desfalecer apunhalada pelo metal frio das minhas verdades interiores. E já morta, lá do outro lado, ser resgatada por um fio de palavras conectadas e significativas sobre meus anseios, sobre quem eu sou, e o mundo que vejo e verei.